Saturday, March 04, 2006

antes do cinema.

ela fitava o chão enquanto ele falava. discorria um discurso inteiro sobre a complexidade de alguma coisa que não tinha nada de complexa, mas que ele realmente queria complicar. não teve interesse algum em responder ou comentar o que ele havia dito. às vezes tudo que ela queria era que ele se calasse.
mexeu o canudinho no copo de suco enquanto lia alguns letreiros a sua frente. ‘pipoca R$X ; refrigerante R$X ; suco R$X ; café expresso pequeno R$X ; café expresso grande...’. ele parou de falar.
ela pegou a mão dele que repousava sobre a mesa e apertou como se quisesse esmigalhar os ossos de seus dedos. olhou pra ele com um sorriso sacana e arteiro, com o canudinho do suco no canto da boca.
ele era magro, magríssimo, esquelético, cadavérico. muito branquinho, um tanto quanto transparente, translúcido. era quase como se ele não estivesse ali, como se não existisse. mas os olhos, pequenos e claros, brilhavam melancólicos pra ela. doces e magnéticos. ele não era assim tão bonito, daquela beleza que todo mundo gosta, mas pra ela era perfeito. e a cada dia que passava, não sabia bem o porque [na verdade sabia muito bem], ele parecia ainda mais belo, ao ponto que sentia como se ele fosse o menino mais bonito que já tinha visto. lindo e completamente inconsciente disso. e era exatamente a ignorância desse fato que fazia com que ele se tornasse infinitamente mais belo. lindo menino transparente. menino que não estava ali; que se abraçasse mais forte reclamava de dor tamanha sua magreza, tão frágil parecia aquele corpo. parecia realmente que seria capaz de se quebrar num tropeço. quando, na verdade, quem andava aos tropeços e sempre se quebrando por aí era ela.
ela o encarava como se ele fosse uma doce lembrança. pois sabia que seus dias estavam contados. muitas vezes se pegava olhando o com olhos de despedida que iam ficando tristonhos sem motivo aparente. não que o silêncio a incomodasse, mas às vezes tudo que ela queria era que ele falasse algo.
pensou em levantar dali e ir embora. dizer para ele que aquilo nem fazia sentido uma vez que tudo já estava condenado. sentiu uma leve dor no peito, como uma saudade. saudade dolorida. mas ele estava bem ali, bem do lado, com a mão sob a dela. quieto e lindo, com um doce sorriso pairando naquela cara de paisagem. era capaz de sentir saudade dele mesmo estando ao seu lado.
respirou, deixando essas preocupações malucas de lado. passou a mão nos cabelos dele, perto da orelha e com um sorriso nos lábios resolveu quebrar o silêncio: ‘estava com saudade de você.’ – ela disse.
houve um silêncio ainda mais profundo que o anterior. ele sorriu extremamente sem graça. um sorriso de agradecimento. olhou para o relógio e disse: ‘ a sessão já vai começar. vamos entrar?’
não sentiu aquela pontada queimando por dentro. para sua própria surpresa não sentiu nada. não ficou triste.
já esperava por isso.

[texto escrito dia 01/02/06]